quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sirene

Sirene.

Carro da polícia: revólveres em punho “ajoelha ajoelha... ajoelha...” Pensei em ínfimo momento: Um serial KILLER, alguém que matou premeditadamente de forma conceitual várias pessoas, realizando uma obra com o sacrifício humano. Mas não, era apenas um professor de física. Agora tente adivinhar o que ele deve ter feito... Vivenciando outros casos de abuso de poder da polícia, a retirada de instrumentos musicais, a impossibilidade dos artesãos de expor... Enfim, decidimos fazer uma intervenção artística, de imediato:

O vídeo abaixo.

Podemos perguntar: acreditamos na arte política? Acredito que toda arte para ser arte é política, e toda alta política tem como prioridade a Arte. A Arte tem eficiência no campo político? A Arte como nos diz Oscar Wilde é inútil, e todo seu poder vem da inutilidade. O fato de nos juntar (ou de pararmos) para ver o outro se expressar, deixar emergir subjetividades, entramos em dimensões além da relação estritamente política: humana e espiritual. No entanto, no encontro artístico e social a política é intrínseca. E todo estado ditador sabe disso, por isso, artistas são sempre alvos desses sistemas, sejam por repressão ou falta de incentivo. Obviamente, se falarmos de eficiência (no sentido de mudança imediata de estrutura), existem métodos muitos mais eficazes de combater um estado que está agindo opressivamente, mas, sem a expressão artística caímos no risco de nos transformar em apenas “máquinas de guerra”.

Estamos cansados de corrupção. De uma polícia bandida criando a cultura do medo. De um estado falido (impostos absurdo e desinteresse em cultura geral: educação saúde arte transporte). Estamos cansados de Globeleza e copa do mundo. Estamos cansados de sanguessugas com interesses pessoais nos cargos públicos. Estamos cansados de valores que privilegia a exterioridade, cada vez mais o supérfluo, estamos cada vez mais contagiados pela droga da realidade publicitária, protegidos pelos muros que protegem a TV, sufocados pelo excesso. Estamos cansados desse corpo social depressivo construído na aquisição desenfreada. Ou será que não estamos tão cansados assim?


http://www.youtube.com/watch?v=eIBfwEDoo2A

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O ritual da personagem - a construção do abstrato

Resumo:
Este artigo fala sobre a construção da personagem a partir de rituais e sua aplicação na linguagem realista.

Palavras chaves: Ritual – Personagem - Realismo

Notícias sob os mofos do teatro realista
Tentarei construir um texto que se relacione com a pobreza. Primeiramente, vamos deixar de fora o mercado/comércio/publicidade. Não vamos nos pautar (só por hoje) pelo cenário oficial, tanto comercial ou intelectual.
Parêntese.
Vamos falar um pouco do cenário oficial.
Nílzia Villaza em seu artigo Performance e o paradigma depressivo começa com o parágrafo:
A junção dos termos acima [Performance e o paradigma depressivo] parece paradoxal, mas, de alguma forma, é sintomática dos tempos atuais em que o Estado se retrai e os cidadãos são chamados a se produzirem performaticamente no espírito da lógica neoliberal, por meio do consumo e da visibilidade crescente oferecida pela multiplicação dos suportes midiáticos. (2009, p. 205).
A sociedade performática já se consolidou uma constante, que se reproduz em diversos discursos confirmando a “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997). Para elucidar cito passagens como:
A maior parte dos seres humanos constrói moradias, dança, cozinha, assiste jogos esportivos, estuda, casa ou descasa, viaja, conta histórias, caça algum animal – ainda que com tubos de aerossol. Do mesmo modo, desempenha papéis sociais: são, pais, filhos, avós, cunhados ou sobrinhos dedicando-se às mais diversas profissões e atividades dentro das sociedades, conformando uma múltipla e densa rede de interações. O que há em comum em tudo isso é a performance (MOSTAÇO, 2009, pg. 15)
Basta recorremos às nossas lembranças para verificar que ao caminhar pelas ruas da cidade há uma variedade de situações de encenações realizadas por não atores, ou seja: sujeitos leigos no desempenho de suas atividades profissionais: vendedores, professores, médicos, advogados, repórteres, etc. (OROFINO, 2009, p. 221)
E dizia Grotowski em 1972 em uma palestra no Brasil:
Apesar de todos os nossos condicionamentos, o que nos distingue são as maneiras de representar na vida real. Se pararmos a representação, que é bem difícil e raro nos tempos que correm, teremos superados as diferenças. Estaremos ainda condicionados pela história, pelas nossas feridas, pelos nossos medos, pelas nossas esperanças. Mas, apesar de tudo isso, seremos semelhantes. Acontece que toda a civilização é uma grande formação de representações (e uso aqui o verbo representar no sentindo inglês de to act, to perform). Vivemos representando papéis; o tempo todo representamos papéis.  (2006, p. 34)
Grotowski está proferindo esse discurso antes da revolução tecnológica e do ápice da vida publicitária. Com o advento dessa revolução, ficamos cada vez mais performático. O “parecer”, imagem representada socialmente tem muito valor, às vezes, mais que o ser na realização efetiva, a venda do produto ganha uma importância que tende a superar sua eficácia, pois sua eficácia acaba se resumindo em algo que serve à venda, ganhando um invólucro comercial que gera afetação.
Hoje não há limites. À virtualidade contribui em demasia aos aspectos performáticos, o mercado realiza a manutenção da desigualdade. Televisões ocupam lugares públicos (de restaurantes a ônibus), poluição excessiva (da sonora à visual), principalmente nas ruas das grandes cidades. Fones de ouvidos de diversas cores e modelos, olhares fixos nos celulares, agora, com acesso ilimitado. Defesas? Fugas? Realidades comuns, porém isolados. Um site ao outro, um pouco de muitas informações. Que maravilha!: promoções e promoções, a toda hora, no celular, na televisão... Câmeras de vídeos nas ruas: sorria para não chorar. O tempo todo: visualizar e produzir informações: narramos e comentamos nossas vidas, da profissional à íntima. Andy Warhol visionário? Constantes 15 minutos de fama, com seus amigos (públicos) virtuais. Penso em George Orwell, não? 1984 (2009). Só que no seu discurso, devido a época (em 48) o controle era mais explicito, quando o livro foi escrito a figura personificada do ditador era forte e presente. Hoje, observamos a figura ditatorial abstraída, embora siga visível a ostentação violenta da polícia garantindo a insegurança na defesa da segurança pública. Cultura do medo: submetemos a abordagens de abuso de poder receando a tortura (ou física ou psicológica). Defesas da liberdade de possuir,  ininterruptas ordens publicitárias que recriam padrões pela sedução, o poder de consumo que se relaciona com o lançamento - a propaganda serve a todos (a realidade é comum); o produto, para ter valor, a poucos -; mas não se deem o luxo de se entristecerem, sua desvalorização será rápida (e eficaz). É proveitoso à manutenção da desigualdade e à lucratividade. Outros produtos serão lançados rapidamente - frustação perene. Essa organização social, que privilegia a construção performática rotineira (produto/comércio), é digna de rituais que disseminam energias que reforçam padrões que se repetem. Paradigma depressivo? Será que há motivo para estarmos depressivos? Sufocados pelo ilimitado! Não há críticas aos veículos tecnológicos, atenção na utilização.
Estamos falando de forma geral, da máquina ditatorial (que neste caso assume um tom empresarial). Na individualidade, subjetividades dimensionais - habitus, diz Bourdie (2007) - dialogando com instituições. A moda (no sentido de modismo e não como expressão artística oficial) que não se restringe apenas à aparência, mas também à maneira de existir: tribos que se misturam na diversidade.
E o teatro neste contexto?
Fragmentações, tensões, sobreposições, livres associações, rizomas... A linearidade na sinfonia caótica da contemporaneidade não tá com nada: é um elemento frágil. Embora que a maior contribuição do pós-moderno é não ditar uma estética ou uma poética específica: o que importa é a áurea! Bem que o pós-dramático aparece como o último grito (do intelectual à intelectualidade papagaia), mas é apenas mais uma linguagem, e nenhuma linguagem é um fim. Mesmo que se faça a linguagem pela linguagem. Se se chegarmos ao ponto de a linguagem for o fim, chegaremos, então, ao um grau de mediocridade altíssimo. Enfim, diversidade é a palavra de ordem. E o que a diversidade tem em comum? Se hoje tudo vira comércio, o teatro não saiu ileso; e sofre com a máquina empresarial que se ocupa da circulação financeira. Sobre esse assunto Flávia Janiaski em seu artigo O produtor e o produto no teatro de grupo faz considerações relevantes como “As manifestações artísticas ficam desta forma, reduzidas e até mesmo presa aos padrões impostos pelo mercado e sua lógica de ação, que é a do consumo e do entretenimento.” ou “(...) se corre o risco do produtor cultural ou o grupo de teatro, serem obrigados a adotar uma imagem que preencha as expectativas destas empresas e isso pode gerar adequação dos valores grupais.” (2008, p. 71) É assim, independente da linguagem, o teatro é um produto que tem que se vender, como tudo. Por que seria diferente? Só porque é teatro? Arte? É. Poderia ser diferente, mas não é! 
Fecha parêntese.
Então, sugiro neste artigo, ignorarmos todo e qualquer tipo de cenário teatral oficial e não colocar em primeiro lugar o quanto funcional (no plano comercial) uma peça é para suprir as necessidades poéticas das leis da contemporaneidade. Outro aspecto que vamos tomar cuidado demasiado é com a questão da obsessão pela originalidade, como Stanley Kubrick em uma de suas poucas entrevistas diz “Acho que um dos grandes erros da arte do século XX é sua obsessão pela originalidade a qualquer preço. (...) Inovar é ir em frente sem abandonar o passado.” (In CIMENT, p. 141, 2013) No contexto atual de que tudo fica desatualizado com um dinamismo assustador, melhor mesmo é nos manter protegidos da novidade. Os conceitos: deixamos emergir na lógica da necessidade, são muitos “pós” que a digestão pode ficar dificultosa, e podemos nos intoxicar com a profusão das combinações dos termos, que em serem reproduzidos demasiadamente ficam desprovidos de áureas e impregnados de superficialidades. O porquê disso tudo? A busca da profundidade que só a simplicidade impulsiona: a busca do refinamento do humano. Vamos determinar prioridades e trabalhar com o que é de consciência comum: a densidade. A densidade dos corpos conscientes: o físico, o emocional e a mente concreta; já que os planos anímico e espiritual exigem um trabalho árduo de desenvolvimento abstrato, para assim conseguir ter vislumbres conscientes dos planos sutis. Por isso começamos com os planos densos para abstrairmos e chegar ao sutil. E para realizar essa pesquisa utilizo a linguagem realista.
Por que o realismo?
O realismo não necessariamente é a reprodução do cotidiano, não no teatro realista ritual como proponho. Na verdade, a busca é que não seja. No realismo, o corpo do ator não é uma expressão do interno puramente, uma expressão direta da alma, fruto de uma expressão puramente abstrata. Mas, sim, uma expressão do interno em um corpo físico que está sofrendo ou desfrutando da realidade cotidiana. Não há anulação do institucional, do corpo social, do contexto material – a cultura. O realismo utiliza o personagem para chegar ao humano e a estória como invólucro de um rito simbólico.
Em outras palavras, pensamos na vida como agentes criativos imersos em contextos circunstanciais, cada ambiente obedecendo leis que determinam possibilidades referenciais de comportamentos. Dentro do contexto cultural, independente de qual, personagens se relacionam intimamente com paisagens internas de universos subjetivos, podendo haver choques ou afinidades com o externo. O realismo nos possibilita representar a esfera mais externa e aparente do humano, o aspecto visível (aparente banal) das relações sociais e ao mesmo tempo nos possibilita criar caminhos para focar as dimensões internas e extra cotidianas da existência humana.
 Em diferentes contextos podemos achar conexões comuns (sempre há!), pois, até se provar o contrário: somos todos humanos numa aparente existência. Mas há também diferenças exorbitantes pela questão do meio. E isso é um ponto relevante para o realismo. O padrão contextual assegura os atos dos personagens. Assim, podemos criar épocas distintas, em locais diferentes. Podemos criar o fantástico, apresentar a linguagem abstrata, no entanto, somos sempre obrigados a justificar. Diferente de algumas linguagens de vanguarda (COHEN, 2007) que podem colocar a atenção na linguagem pelo desenvolvimento da linguagem, no realismo qualquer romper e projetar ao extra cotidiano tem que ter um embasamento, a linguagem serve a uma estória a ser contada, mesmo que desconexa. Podemos ver um universo desconexo com elementos oníricos, desde que deixamos pistas para o público que isso, por exemplo, é fruto da mente de um personagem esquizofrênico. No realismo sempre há têmpora do indivíduo (ou indivíduos) com a realidade comum cotidiana.
Chamo de realismo ritual porque a pretensão é acessar os arquétipos e os tencionar. O espetáculo realista tem que mexer com as estruturas convencionais, é o momento que as condições como humano e humanidade são questionadas, abaladas, desestruturadas ou reestruturadas... É inevitável, que o humano em algum momento vai dinamizar o estático (a referência estabelecida), a subversão (o desajuste emergente da diversidade individual) que regurgita na fisicalidade externa e se projeta no interno, e vice-versa. A estória serve sempre como uma porta para instabilidade, uma transição, um rito de passagem, tem uma dinâmica energética intensa. Enfim, no teatro ritual realista a estória é um fio que orquestra padrões energéticos individuais, que compõem a condução das relações do corpo coletivo.
Agora, alguns preceitos técnicos:
Aspecto importante no teatro ritual é a estruturação formal, pois, estamos na fisicalidade que é o mundo da forma. Deve-se chegar ao ponto em que o grupo consiga reproduzir a unidade, e, para isso, tem-se que lidar com a precisão. O desenho da dança física que se agencia com os movimentos intelectuais e astrais (emoções e sentimentos) tem que ter a intenção da impecabilidade. Repetição é a palavra. Quando o corpo em movimento vai assimilando o desenho cênico, os limites cada vez mais são fixados, possibilitando que a criatividade seja estimulada. Se não há limites, a criatividade é menos viável, Yoshi Yoda radicaliza dizendo “(...) quanto mais estivermos limitados pelos mais variados tipos de proibições e restrições, mais chance teremos de atingir uma atuação criativa” (1999). Embora as marcas sejam repetidas com precisão, existe a diferença; pelo simples fato de que a repetição é uma mentira, nada na sua complexidade é susceptível a repetição quando estivermos considerando o humano como ponto central de uma pesquisa.
Outro aspecto é a questão da identificação.
 “Os corpos podem ser físicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais – são sempre corpos ou corpus” (DELEUZE & PARNET, 2004, p. 70).
 “ (...) as qualidades também são corpos, os sopros e as almas são corpos, as próprias acções e as paixões são corpos” (DELEUZE & PARNET, 2004, p. 81).
Se considerarmos que nossos corpos materiais não são apenas veículos de uma alma, que somos Consciências em variegados níveis dimensionais se agenciando constantemente, corpos formando um padrão vibracional. Um personagem será uma criação/evocação de corpos que conscientemente criaremos identificações. Na vida não é diferente, só há possibilidade de personagem porque há identificação, às vezes, nos identificamos tanto que acreditamos ser o que projetamos, nos viciamos em nossas criações, nos acorrentamos no padrão que formamos. O trabalho do ator é a construção e conscientização dos corpos que o personagem carrega (dos institucionais aos mais íntimos) – falarei da construção (evocação) destes corpos mais adiante. No plano formal sempre há identificações, mesmo quando aparentemente não há personagem formal clássico, e sim a “persona”, por exemplo (COHEN, 2007), mesmo que o ator esteja representando o ator (uma pessoa se expondo), haverá evocação, aproximações, manipulações de corpos que se manifestam, e a percepção desses corpos já é um nível de identificação. O personagem “Ator” sempre existirá, mesmo se usarmos outra nomenclatura com ares antigos de inovação. Intelectualmente podemos construir o fim do personagem, no entanto, só existe no plano mental dos conceitos intelectualizados pertencente ao planos da literatura e não da exposição prática de um ato público.

Da construção da personagem
 [Stanilasvski] insiste para os atores executarem pequenos objetivos físicos por meio de ações, pesquisando sua lógica e consecutividade com sinceridade e verdade mesmo sem terem analisado detalhadamente a personagem, como comumente faziam. (MEYER, 2007, p.99)
e
A ideia de que “uma série de ações físicas, realísticas, tem a capacidade de engendrar e criar a vida mais elevada de um espírito humano em um papel” causava estranhamento até entre os seus atores, já que o próprio diretor, anteriormente, orientava-os penetrar nas vias do sentimento através da memória afetiva. (MEYER, 2007, p.102)
   
Abordo a personagem na construção do seu universo interior. No entanto, diferente de Stanislavski que, em sua primeira fase, abordava em uma construção de estudos intelectuais (de mesa) sobre as memórias afetivas e psíquicas da personagem, um estudo detalhado de sua trajetória para depois ir ao físico; o que proponho em relação ao realismo é uma construção interior do universo abstrato não apenas de forma intelectual, mas a materialização física do abstrato, a partir das ações físicas (como na última fase de Stanislavski), criando um ritual da personagem. Esse ritual, como estou propondo, ignora as memórias e a trajetória de vida da personagem, ele funciona como aproximações rizomáticas a diversos elementos que a priori não tem lógica cartesiana.
O início é o físico: a dança – criação de um repertório de ações e vibrações, para depois se definir uma partitura, que é o material susceptível a experimentação de ritmos, intensidades e qualidades energéticas. Estipulado a partitura, repete-se para que entre em um nível de precisão e, assim, proporcionar liberdade para evocar o arquétipo. Em caso de textos previamente escritos, tentamos identificar o padrão arquetípico dos personagens e os atores jogam na dança/partitura esse arquétipo, tencionando-o, colocando (se necessário) elementos complementares (associações subjetivas): textos, músicas, projeções, coros, sonhos, etc. Dimensiona a dança/partitura na construção simbólica, buscando que o Mito se revele, depois começamos a construção do personagem nas ações físicas da cena, no jogo.
O arquétipo é o padrão universal que pode se matizar quando se aproxima com aspectos do físico/material do personagem, possibilitando em planos intelectuais a construção do mito. Se pegarmos o arquétipo de cristo e aproximar a vida de um personagem histórico como Jesus, chegamos ao mito do sacerdote perfeito, que melhor expressou na materialidade a energia arquetípica crística. Quando colocamos o olhar no personagem e o abordamos com as leis concretas, podemos, por exemplo, ver um Jesus esquizofrênico, que dizia ver e falar com Deus, agindo socialmente contra o poder vigente estabelecido, que casou com uma prostituta e acabou sendo torturado e morto. E na tridimensionalidade sempre há motivos para questionamentos, nesta abordagem, podemos colocar em questão a esquizofrenia, e ver um Jesus por outro ângulo: que fez experiências metafísicas e se sacrificou porque não quis compactuar com a doença social e “isto é nocivo porque a consciência doente tem a esta altura interesse capital em não se livrar da doença” (ARTAUD, 2007, p.28). Estamos falando de um personagem Jesus que é a representação simbólica do arquétipo puro de Cristo, no entanto, personagens dificilmente vão ter como influência arquétipos puros, quase sempre são uma junção de dois ou mais.
Desta forma, a construção da personagem não fica limitada a construção psicológica e afetiva, lógica de uma trajetória de vida. O ritual obedece a leis pós-dramática, atua na abstração, negando a estrutura dramática cronológica de fatos. As memórias são apenas mais um corpo a ser agenciado
A construção filosófica é que não somos apenas frutos de memórias conscientes, o passado em si é muito pouco para justificar nossos atos, somos formados por relações sutis que transcendem a consciência intelectual concreta, somos frutos também de nossas experiências oníricas não conscientes, de influências de corpos que vagueiam no inconsciente, de memórias não pessoais pertencente a tradição social que transcendem uma existência pessoal. Por isso a construção do padrão ritualístico construído em uma lógica abstrata não linear. Dessa forma o ator cria também um inconsciente, ou abre canal para forças inconscientes se manifestarem, é uma criação consciente do ator de um inconsciente do personagem. Com essa carga que o ator vai jogar a situação, o conflito, a intriga, a problematização do contexto social, a limitação cultural da cena, pois no agora só existe a situação e padrões vibracionais (conjunto complexo da expressão agenciada de corpos) se expressando: “Tudo é uma mistura de corpos, os corpos penetram-se, forçam-se, envenenam-se, imiscuem-se, retiram-se ou destroem-se...” (DELEUZE & PARNET, 2004, p. 81).

Brevíssima consideração final:
 O espetáculo realista ritual serve como “veículo”, no sentido que Grotowski descreve em que o “(...) resultado não é o conteúdo; o conteúdo está na passagem do pesado ao sutil.” (GROTOWSKI, 2007, p. 235).

Bibliografia:
ARTAUD, Antonin. Van Gogh - O suicida da sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007.
CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa, Ed: Relógio d’água, 2004.
GROTOWSKI, Jerzy. Palestra no Brasil. Revista Cavalo Louco. Ano 1 Nº 1 Março, 2009. Palestra.
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JANIASKI, Flávia. O produtor e o produto no teatro de grupo. Revista Urdimento. Florianópolis. v.1 n. 11. P. 67-77. Dez 2008.
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MOSTAÇO, Edélcio. Fazendo cena: a performatividade. In: MOSTAÇO, E.; OROFINO, I.; STEPHAN, B.; COLLAÇO, V. Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009. p. 15 – 47.
OROFINO, Isabel. Mídia, performatividade e poder: estratégias de mobilização das audiências pela tela da TV. In: MOSTAÇO, E.; OROFINO, I.; STEPHAN, B.; COLLAÇO, V. Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009. p. 219 – 241.
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ORWELL, George. 1984. Rio de Janeiro: Cia das letras. 2009

VILLAÇA, Nízia. Performance e o paradigma depressivo. In: MOSTAÇO, E.; OROFINO, I.; STEPHAN, B.; COLLAÇO, V. Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009. p. 205 – 217.