Introdução
(para o projeto de pesquisa do mestrado, 10/10/13)
Inspirações
“Os corpos podem ser físicos, biológicos,
psíquicos, sociais, verbais – são sempre corpos ou corpus” (DELEUZE &
PARNET, p: 70, 2004).
“ (...) as qualidades também são corpos, os
sopros e as almas são corpos, as próprias acções e as paixões são corpos”
(DELEUZE
& PARNET, p: 81, 2004).
“Tudo
é uma mistura de corpos, os corpos penetram-se, forçam-se, envenenam-se,
imiscuem-se, retiram-se ou destroem-se...”
(DELEUZE
& PARNET, p: 81, 2004)
Apesar
de todos os nossos condicionamentos, o que nos distingue são as maneiras de
representar na vida real. Se pararmos a representação, que é bem difícil e raro
nos tempos que correm, teremos superados as diferenças. Estaremos ainda
condicionados pela história, pelas nossas feridas, pelos nossos medos, pelas
nossas esperanças. Mas, apesar de tudo isso, seremos semelhantes. Acontece que
toda a civilização é uma grande formação de representações (e uso aqui o verbo
representar no sentindo inglês de to act,
to perform). Vivemos representando papéis; o tempo todo representamos papéis.
(GROTOWSKI
in MICHALSKI, P. 34, 2006)
.
Dos Personagens
As dimensões insistem em se
“agenciarem”, o emocional com o mental com o físico - a matéria: a extrapolação
da imagem, veículos representativos no convívio social, vigiados por
referências:
eu/namorado;
eu/professora; eu/cliente; eu/pedestre;
eu/músico;
eu/depressivo; eu/vagabundo; eu/juiz;
eu/...;
eu/o
que represento neste momento em tal situação.
Atuamos em variegados
níveis, da obediência (ou não) ao padrão cultural vigente às micros relações que
se influenciam na convivência. Guiados por uma vida interior, na solidão (mas
nunca sozinhos), perdura a representação com o artifício da lembrança: recriar
experiências, situações, sentimentos, paixões... Representações ficcionais: um
acidente, briga de um casal, declaração de amor, nascimento de uma criança, ato
sexual... sempre haverá impressões e versões distintas (subjetividade
inerente): por mais que buscamos a fidelidade, observamos a partir de
referenciais criados subjetivamente, dialogando com a fragilidade ineficiente
de imagens que sofrem interferência do ato presente. Memórias criativas, paisagem
mental (re)construída. Impressões resgatadas e recriadas pelo abismo subjetivo-
uma forma concreta (mas não fixa) do efêmero.
Do efêmero:
Entre distintas emoções, paixões,
sentimentos, escolhemos como ilustração o medo. O medo é uma entidade que se manifesta em um agenciamento
de planos dimensionais: as experiências pretéritas que vão do concreto às
abstrações, as idas e vindas a poços inconscientes coletivos e as sutilezas do
presente moldam a manifestação. O medo de estar entrando em um campo perigoso
mentalmente e assim não conseguir escrever esse projeto no prazo de entrega
estabelecido; é diferente do medo de um bicho peçonhento que aparece em minha
sala. A distância que mantenho do bicho influencia na intensidade; o “estado de
espírito” do dia também influencia. A subjetividade de estar vivo é algo que
não se repete por dialogar constantemente com aspectos criativos.
A vibração é um ato único e criativo.
Existem padrões vibracionais
que se manifestam, no entanto, cada padrão dialoga com subjetividades, memórias
e circunstâncias presente que matizam a experiência, moldando constantemente a
personalidade (construindo referências à criação do personagem individual e/ou social).
A construção de um personagem são definições de padrões que irão se repetir.
Definimos do corpo físico à vida interior (podendo ser mais ou menos
psicológica, mais ou menos caricata, mais ou menos verossímil). Em um personagem
há um padrão que sempre o revisitamos, digno de identificação. O personagem de
antemão nos sugere um caminho, nos guia para criar um padrão que difere na
sutileza. E essa é uma questão que me interessa: existe tanto o padrão, como a
diferença no padrão. No teatro, em toda apresentação o ator tem que chegar a um
padrão estabelecido, e esse “chegar” (agenciamentos materiais complexos) é a
vida desmembrada em multiplicidades, quiçá, infinitas.
Pensamos o padrão coletivo
se desmembrando em atores distintos. Todos iguais? Sim e Não: todos iguais,
pontos comuns que os identificam; todos diferentes, nuances intrínsecas.
O personagem serve a algo
superior: o espetáculo. Está a serviço da concepção. Seu desempenho, sua
construção subjetiva, dialoga compondo com todos os elementos teatrais (da
dramaturgia ao cenário; das ações ao público). E as nuances de sua
interpretação são responsáveis...
O público
“É,
então, ao cinema que devemos nos dirigir se quisermos ver personagens (e com
estes nos identificarmos), ou se quisermos vivenciar a experiência de sermos
sujeitos-espectadores da representação.”
(GUÉNOUN,
p: 129, 2004)
Uma apresentação de um
espetáculo pressupõe alguém assistindo: um
espectador que, inevitavelmente, exerce influência sobre o espetáculo. Agente
criativo. Sempre que refletimos na criação teatral, a entidade público tem que ser considerada. Inevitavelmente. Pois,
para que serve o personagem senão para o público? E para falar do público,
teremos que falar um pouco do papel que o teatro (e o personagem) ocupa hoje
depois da revolução tecnológica. O advento do audiovisual e sua popularização
começa a exercer a função que era do teatro, principalmente em relação a
identificação com personagens e estórias. Então, o ator que busca o personagem,
agora, também o encontra como opção a linguagem do cinema, televisão, vídeo
(com suas exigências específicas da linguagem). No entanto, no teatro uma coisa
é insubstituível, o jogo: o estar fazendo. O prazer de estar jogando e o prazer
de ver os atores jogarem (GUÉNOUN, 2004). Por mais que a proposta de fazer um
programa de televisão, por exemplo, ao vivo, em que os atores improvisem a cada
programa, existe o filtro da câmera, que é um abismo entre ator e público, a
presença física é insubstituível.
Como a Presença é inevitável
a concepção tem obediência ao público. É diferente apresentar para 100, 12, 45,
2000, 7, 67, 2... pessoas. É diferente apresentar para 7, e o espetáculo foi
concebido para 7; do que apresentar para 7, e o espetáculo foi concebido para
60. Difere sala e rua. O público não está nos ensaios fisicamente (apenas como
áurea) e o jogo já está acontecendo, aos poucos vão entrando, um ou outro vão
assistindo, até que se abre ao público geral concebido. Então, o local e o
número de pessoas influenciam diretamente na concepção.
A Concepção
“No
teatro temos um elo visível – o espetáculo – e um outro quase invisível: os
ensaios. Os ensaios não são apenas a preparação para a estréia do espetáculo,
são para o ator um terreno em que descobrir a si mesmo, suas capacidades, as
possibilidades de ultrapassar os próprios limites”.
(GROTOWSKI in FLASZEN, 2007,
p: 229)
São muitos elementos que
devemos considerar para definir uma concepção. (número de atores, linguagem,
espaço, público, publicidades, recursos financeiros...) A concepção são os
limites do jogo. Assim, se revisito a questão proposta de se tirar todos os
elementos do teatro que não é teatro o que sobra? Estabelecemos limites que é
inevitável que se volte ao ator. E o impulso que me percorre é um trabalho do
“ator sobre si mesmo” (FLASZEN, 2007). Penso em um ator que vá ao encontro do
teatro pelo teatro, e não na busca da obra teatral, do prestígio publicitário e
do reconhecimento alheio, e, desta forma, começo a determinar algumas regras do
jogo (poderiam ser outras?): solidão: trabalho individual, ou seja, “(...) o
que o ser-humano pode fazer com sua própria solidão, como ela pode ser
transformada em uma força e em uma relação com aquilo que chamamos de ambiente
natural” (GROTOWSKI IN FLASZEN, p: 231, 2007). A pesquisa se foca no material
que o ator dispõem, corpos (físicos e sutis) em um espaço vazio, estruturação do
ritual. “Quando me refiro ao ritual, falo de sua objetividade; quer dizer que
os elementos da Ação são os instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e a cabeça dos atuantes” (GROTOWSKI in
FLASZEN, p. 232, 2007).
“O corpo, o coração e a cabeça dos atuantes” associo aos corpos
manifestados materialmente (físico, emocional e mental) de que comecei falando
no início, o princípio de “agenciamentos”. Um ator que busca no teatro a
experiência de Existir; uma “ideia de teatro como campo de investigação prática
da experiência humana” (NUNES, p: 177, 2011). O ator olha a experiência humana
como “um estrangeiro em seu próprio país” (DELEUZE, p: 77, 2004). Aquém às
identificações, movimentação consciente de vibrações, atuar com estudo ( jogo)
da experiência humana...
Assim, chego à questão: (O) Por (quê) que precisamos
do público?
Referências Bibliográficas.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo:
Martins fontes, 1999.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia/
vol: 1. São Paulo: Ed 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; PARNET,
Claire. Diálogos. Lisboa, Ed:
Relógio d’água, 2004.
FLASZEN, Ludwik e
POLLASTRELLI, Carla (org). O teatro
laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969: textos e materiais de Jerzy
Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugênio Barba. São Paulo: Perspectiva/SESC, 2007.
GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? São Paulo:
Perspectiva, 2004.
NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São
Paulo: Annablume; Florianópolis: UDESC, 2011.