domingo, 3 de novembro de 2013

O ritual da personagem: A vida a partir da abstração.


Introdução
(para o projeto de pesquisa do mestrado, 10/10/13)

Inspirações

 “Os corpos podem ser físicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais – são sempre corpos ou corpus” (DELEUZE & PARNET, p: 70, 2004).

 “ (...) as qualidades também são corpos, os sopros e as almas são corpos, as próprias acções e as paixões são corpos”
(DELEUZE & PARNET, p: 81, 2004).

“Tudo é uma mistura de corpos, os corpos penetram-se, forçam-se, envenenam-se, imiscuem-se, retiram-se ou destroem-se...”
(DELEUZE & PARNET, p: 81, 2004)

Apesar de todos os nossos condicionamentos, o que nos distingue são as maneiras de representar na vida real. Se pararmos a representação, que é bem difícil e raro nos tempos que correm, teremos superados as diferenças. Estaremos ainda condicionados pela história, pelas nossas feridas, pelos nossos medos, pelas nossas esperanças. Mas, apesar de tudo isso, seremos semelhantes. Acontece que toda a civilização é uma grande formação de representações (e uso aqui o verbo representar no sentindo inglês de to act, to perform). Vivemos representando papéis; o tempo todo representamos papéis.
(GROTOWSKI in MICHALSKI, P. 34, 2006)
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Dos Personagens

As dimensões insistem em se “agenciarem”, o emocional com o mental com o físico - a matéria: a extrapolação da imagem, veículos representativos no convívio social, vigiados por referências:

eu/namorado; eu/professora; eu/cliente; eu/pedestre;
eu/músico; eu/depressivo; eu/vagabundo; eu/juiz;
eu/...;
eu/o que represento neste momento em tal situação.

Atuamos em variegados níveis, da obediência (ou não) ao padrão cultural vigente às micros relações que se influenciam na convivência. Guiados por uma vida interior, na solidão (mas nunca sozinhos), perdura a representação com o artifício da lembrança: recriar experiências, situações, sentimentos, paixões... Representações ficcionais: um acidente, briga de um casal, declaração de amor, nascimento de uma criança, ato sexual... sempre haverá impressões e versões distintas (subjetividade inerente): por mais que buscamos a fidelidade, observamos a partir de referenciais criados subjetivamente, dialogando com a fragilidade ineficiente de imagens que sofrem interferência do ato presente. Memórias criativas, paisagem mental (re)construída. Impressões resgatadas e recriadas pelo abismo subjetivo- uma forma concreta (mas não fixa) do efêmero.

Do efêmero:
Entre distintas emoções, paixões, sentimentos, escolhemos como ilustração o medo. O medo é uma entidade que se manifesta em um agenciamento de planos dimensionais: as experiências pretéritas que vão do concreto às abstrações, as idas e vindas a poços inconscientes coletivos e as sutilezas do presente moldam a manifestação. O medo de estar entrando em um campo perigoso mentalmente e assim não conseguir escrever esse projeto no prazo de entrega estabelecido; é diferente do medo de um bicho peçonhento que aparece em minha sala. A distância que mantenho do bicho influencia na intensidade; o “estado de espírito” do dia também influencia. A subjetividade de estar vivo é algo que não se repete por dialogar constantemente com aspectos criativos.
A vibração é um ato único e criativo.
Existem padrões vibracionais que se manifestam, no entanto, cada padrão dialoga com subjetividades, memórias e circunstâncias presente que matizam a experiência, moldando constantemente a personalidade (construindo referências à criação do personagem individual e/ou social). A construção de um personagem são definições de padrões que irão se repetir. Definimos do corpo físico à vida interior (podendo ser mais ou menos psicológica, mais ou menos caricata, mais ou menos verossímil). Em um personagem há um padrão que sempre o revisitamos, digno de identificação. O personagem de antemão nos sugere um caminho, nos guia para criar um padrão que difere na sutileza. E essa é uma questão que me interessa: existe tanto o padrão, como a diferença no padrão. No teatro, em toda apresentação o ator tem que chegar a um padrão estabelecido, e esse “chegar” (agenciamentos materiais complexos) é a vida desmembrada em multiplicidades, quiçá, infinitas.
Pensamos o padrão coletivo se desmembrando em atores distintos. Todos iguais? Sim e Não: todos iguais, pontos comuns que os identificam; todos diferentes, nuances intrínsecas.
O personagem serve a algo superior: o espetáculo. Está a serviço da concepção. Seu desempenho, sua construção subjetiva, dialoga compondo com todos os elementos teatrais (da dramaturgia ao cenário; das ações ao público). E as nuances de sua interpretação são responsáveis...


O público

“É, então, ao cinema que devemos nos dirigir se quisermos ver personagens (e com estes nos identificarmos), ou se quisermos vivenciar a experiência de sermos sujeitos-espectadores da representação.”
(GUÉNOUN, p: 129, 2004)

Uma apresentação de um espetáculo pressupõe alguém assistindo: um espectador que, inevitavelmente, exerce influência sobre o espetáculo. Agente criativo. Sempre que refletimos na criação teatral, a entidade público tem que ser considerada. Inevitavelmente. Pois, para que serve o personagem senão para o público? E para falar do público, teremos que falar um pouco do papel que o teatro (e o personagem) ocupa hoje depois da revolução tecnológica. O advento do audiovisual e sua popularização começa a exercer a função que era do teatro, principalmente em relação a identificação com personagens e estórias. Então, o ator que busca o personagem, agora, também o encontra como opção a linguagem do cinema, televisão, vídeo (com suas exigências específicas da linguagem). No entanto, no teatro uma coisa é insubstituível, o jogo: o estar fazendo. O prazer de estar jogando e o prazer de ver os atores jogarem (GUÉNOUN, 2004). Por mais que a proposta de fazer um programa de televisão, por exemplo, ao vivo, em que os atores improvisem a cada programa, existe o filtro da câmera, que é um abismo entre ator e público, a presença física é insubstituível.
Como a Presença é inevitável a concepção tem obediência ao público. É diferente apresentar para 100, 12, 45, 2000, 7, 67, 2... pessoas. É diferente apresentar para 7, e o espetáculo foi concebido para 7; do que apresentar para 7, e o espetáculo foi concebido para 60. Difere sala e rua. O público não está nos ensaios fisicamente (apenas como áurea) e o jogo já está acontecendo, aos poucos vão entrando, um ou outro vão assistindo, até que se abre ao público geral concebido. Então, o local e o número de pessoas influenciam diretamente na concepção.

A Concepção

“No teatro temos um elo visível – o espetáculo – e um outro quase invisível: os ensaios. Os ensaios não são apenas a preparação para a estréia do espetáculo, são para o ator um terreno em que descobrir a si mesmo, suas capacidades, as possibilidades de ultrapassar os próprios limites”.
 (GROTOWSKI in FLASZEN, 2007, p: 229)

São muitos elementos que devemos considerar para definir uma concepção. (número de atores, linguagem, espaço, público, publicidades, recursos financeiros...) A concepção são os limites do jogo. Assim, se revisito a questão proposta de se tirar todos os elementos do teatro que não é teatro o que sobra? Estabelecemos limites que é inevitável que se volte ao ator. E o impulso que me percorre é um trabalho do “ator sobre si mesmo” (FLASZEN, 2007). Penso em um ator que vá ao encontro do teatro pelo teatro, e não na busca da obra teatral, do prestígio publicitário e do reconhecimento alheio, e, desta forma, começo a determinar algumas regras do jogo (poderiam ser outras?): solidão: trabalho individual, ou seja, “(...) o que o ser-humano pode fazer com sua própria solidão, como ela pode ser transformada em uma força e em uma relação com aquilo que chamamos de ambiente natural” (GROTOWSKI IN FLASZEN, p: 231, 2007). A pesquisa se foca no material que o ator dispõem, corpos (físicos e sutis) em um espaço vazio, estruturação do ritual. “Quando me refiro ao ritual, falo de sua objetividade; quer dizer que os elementos da Ação são os instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e a cabeça dos atuantes” (GROTOWSKI in FLASZEN, p. 232, 2007).
O corpo, o coração e a cabeça dos atuantes” associo aos corpos manifestados materialmente (físico, emocional e mental) de que comecei falando no início, o princípio de “agenciamentos”. Um ator que busca no teatro a experiência de Existir; uma “ideia de teatro como campo de investigação prática da experiência humana” (NUNES, p: 177, 2011). O ator olha a experiência humana como “um estrangeiro em seu próprio país” (DELEUZE, p: 77, 2004). Aquém às identificações, movimentação consciente de vibrações, atuar com estudo ( jogo) da experiência humana...


Assim, chego à questão: (O) Por (quê) que precisamos do público?

Referências Bibliográficas.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins fontes, 1999.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia/ vol: 1. São Paulo: Ed 34, 1995.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa, Ed: Relógio d’água, 2004.

FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla (org). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969: textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugênio Barba. São Paulo: Perspectiva/SESC, 2007.

GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004.

NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo: Annablume; Florianópolis: UDESC, 2011.

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