Uma
viagem de ônibus (ou a escolha de elenco).
(3/11/13)
Ela entra no ônibus, e não me viu.
O contexto: Caminho sempre... São 7 quilômetros Ferrugem
x Garopaba. Adoro esse trajeto. O
inverno foi lindo, frio intensamente suportável! E a primavera impecável, um
vento nordeste que não é frio, mas com força de pólen no ar, maravilhoso mas te
exige esforço, por vezes, chuvas torrenciais, que aliviam qualquer tensão que
possa haver: chuvas de fecundidades, a natureza plantando. E o pôr do sol? Alucinantes.
Inefável, por não ser reproduzível.
No começo, as pessoas se surpreendiam quando eu recusava
a carona, “não, não... tô de boa. Tá bom pra caminhar”, agora se acostumaram:
Teatro Professor – um pouco louco. Hoje preferir caminhar do que andar de carro
pode ser um sinal de loucura, a lógica é o vício, escravo de suas máquinas, sem
julgamentos: o conforto e a praticidade são relevantes, eu é que gosto da
“crueldade” como diz Artaud, crueldade no sentido de oposição ao conforto,
crueldade como Vida. Pego a carona, quando sinto que é. Todas são únicas. O
“estar no presente” da Mnouchkine.
Então, desci do ônibus que leva e traz os estudantes
Garopaba x Florianópolis, comecei a caminhada habitual para Ferrugem e Ela me
oferece uma carona: um primeiro contato, superficial.
Quatro dias depois, volto a pegar o ônibus para a
faculdade. Aula de Decroux, o
ilustrador. Nota pessoal não relevante: odeio! O Coppeau gosto da literatura,
gosto desse teatro que ele pinta, o Jouvet é o que foi pra guerra? Que tem três
atores e um é bêbado, rege a lenda que “eram péssimos militares e ótimos atores”
(comentário proferido no debate em uma aula do mestrado). Esse é genial! Como
costumo falar, são as referências mitológicas do século XX. Os que deixaram
rastros para que os criássemos em uma construção imaginária: a “rostidade”,
moldada a partir de necessidades atuais. Stanilawski é o símbolo do que começou
tudo, a abertura das portas, como disse
Grotowski é o que fez as perguntas em que vai desencadear as vivências
posteriores (“A porta aberta” nome sugestivo hein Peter Brook?!). Grotowski, o
sacerdote, tem a consciência da construção dos personagens míticos, tanto que
na palestra que proferiu no Brasil 1972 vai dizer:
Eu
consegui isso em determinados momentos, quando apareceu um certo personagem
chamado Grotowski, cuja imagem existe em
diversos países, um personagem mítico, provavelmente alguém que descobriu um
método eficiente no domínio da arte. Ele conhece a chave da criação, em certos
momentos pode fazer uma espécie de milagre profissional.
Este
personagem não tem nada a ver comigo, mas tem sua própria vida que me ajuda.
Esses personagens adquiriram um status de entidades.
Artaud, o que era atormentado pela lucidez. Imagina Europeu Francês com todo cenário
artístico da época, chega à América latina, falando de Decroux, Jouvet,
Coppeau, sobre o teatro francês, enfim e... Ahã, então, toma esse chazinho de
umas plantas (de poder): o maluco se atormentou mesmo. Um gênio que encontramos
em uma literatura ímpar. Um pulsar teatral que é um reverberar na matéria de
impulsos que permeiam o metafísico. Que vai escrever e ajudar a criar a
personagem do suicida da sociedade, um Van Gogh: lucidez fruto de uma
sensibilidade transcendente, de um olhar que penetra nos corpos, sacerdotes: a
arte de penetrar dimensões.
Olhar...
Estou no ônibus
indo para aula de Decroux, Ela entra e senta do meu lado. Eu de fone de ouvido
(escutando Jeff Buckley – um anjo), penso: essa é... de onde eu conheço?... Ah!
A menina da carona. Tiro os fones de ouvido. Ela me diz “pode ficar escutando”
respondo “Prefiro não”. Começamos a conversar... Fluidez, afinidade pulsante. Eu
“Como a gente nunca tinha se visto?” Ela “Como não, nesse, nesse e nesse dia” Eu
“Ah... sim, lembrei”. Eu apenas não estava associando o nome a pessoa. Pensei “É
você, claro... Agora eu lembro.” Depois desse encontro, virou rotina sentarmos
juntos no ônibus.
Bom, contextualizado, retomamos a cena inicial. Lembram
(a primeira frase deste ensaio)?
Meu destino esse dia: oficina de montagem teatral que
ministro semanalmente no projeto de extensão do IFSC. Estamos montando um
exercício cênico a partir da peça didática de Brecht “Aquele que diz sim,
Aquele que diz não”. A oficina que começou com 10 pessoas restaram 7, normal,
começa a pressão teatral, alguns saem. No início realizei jogos, para ver o
grupo, não conhecia quem estava participando. Aí decidi pelo exercício cênico
didático. Não peguei o texto em si, mas a proposta: estrutura, diálogos e
personagens simples (quase caricatos). A situação ficou assim: uma vila (que
representa simbolicamente a humanidade) texto inicial de Becket:
Não
vamos perder tempo com discussões inúteis, vamos fazer alguma coisa enquanto
ainda temos tempo. Não é todos os dias que somos solicitados. Outros fariam tão
bem, ou melhor do que nós. O chamado que acabamos de escutar é dirigido a toda
humanidade, mas neste local e nesse momento, a humanidade toda se resume a nós.
Queiramos, ou não.
Chega na vila a Peste (que é personificada por um casal: ele
um burocrata, contamina com bases em princípios éticos, e ela, uma inteligência
psicopata). Um grupo de pessoas tem que sair para buscar o antídoto. Na
expedição uma pessoa adoece e o grupo decide se dividir: uns, ficam cuidando o
doente; e os outros, levam o antidoto e depois voltam para resgate. Tudo
resolvido. Aparece a Peste para problematizar, a questão é: se você tivesse a
escolha de salvar (ou não) a humanidade, você faria?
Todos os participantes com pouca experiência teatral,
nesse dia da viagem a gente ia acabar de marcar a peça. Ter o esqueleto
completo do espetáculo/exercício, que foi criado de improvisos que se repetiam,
de imagens estáticas que depois iam se modificando quando ganhavam movimento, e
marcas indicadas por mim, concebidas intelectualmente. Agora, eles estão
entendendo a questão de repetir, a relação “reprodutibilidade e espontaneidade”
que Matteo Bonfitto e Lídia Olinto escrevem em seu artigo na Revista Urdimento
(nº20, 2013). O repetir que nunca é igual, mas que cria precisão e uma áurea
energética grupal. E trabalho de personagem – olhar prático da experiência
humana.
Cogitei em levantar e ir sentar ao seu lado. Pesando as
circunstâncias, as opções disponível, viajar com Ela (que geralmente faço) ou
ler o Ator no séc XX para a prova de mestrado, optei, nesse dia, para quebrar a
rotina, pela leitura acadêmica. E falando de academia: sobre as leituras
obrigatórias para a prova: Guénoun e Sandra Meyer maravilhosos – ótima
companhia teatral. O corpo docente de uma instituição é muito relevante, esse
corpo é importante porque que determina o tom da instituição. Dentro de
qualquer instituição concreta ou abstrata, existem as “palavras de ordem” que
estruturam e limitam, criando referências a serem tencionadas. Então, observamos
Pós-moderno, pós-dramático, performatividade, mitos (copeau, grotowski, Artaud,
Peter brook...), construções filosóficas, formatações linguísticas. Essas
“palavras de ordem” como diz Deleuze são sempre para a afirmação da
redundância, para a manutenção da estrutura construída. No entanto, dentro
dessas redundâncias a sempre espaços para as brechas, rachaduras subjetivas,
processos de abstrações, “linhas de fuga”. E a criatividade está no “Jogo”
(sentido teatral) dessas circunstâncias, e o poder de penetrá-las. Assim, no
artigo que vou escrever para a cadeira “O ator e o teatro contemporâneo”
conduzida pelo Mestre Dr. José Ronaldo Faleiro, quero refletir sobre a
linguagem escrita teatral, a reverberação do teatro na literatura. A diferença
entre agentes teatrais que escrevem (ator, espectador, diretor, historiador). E
para fazer isso, limites concretos, viés da tensão da linguagem. O resumo do
artigo:
Resumo:
Refletir sobre o discurso teatral, na linguagem literária,
a partir do estudo de sua funcionalidade diante de um contexto, que molda tanto
a estrutura estética como o conteúdo, jogo com “palavras de ordem” e “linhas de
fuga” (DELEUZE &GUATTARI). Como objeto de análise, utilizo manifestos de
Copeau; “O suicida da sociedade” de Artaud; palestra de Grotowski de 1972 no
Brasil; e o artigo acadêmico “A
intersecção entre reprodutibilidade e espontaneidade no trabalho do ator” de
Lídia Olinto e Matteo Bonfitto. Como base reflexiva, utilizo o capítulo “20 de
novembro de 1923 – Postulados da linguística” (Mil Platôs Vol.2) e “Ano zero –
Rostidade” (Mil Platôs Vol. 4) de Deleuze & Guattari (1995); e, também, a
aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970: “A
ordem do discurso” de Michel Foucault (1996).
Palavras-chave: Literatura teatral – Linguagem - Discurso
Fecho o livro, é o momento de eu descer, chegamos ao
IFSC. Levanto. Atrás do motorista tem um vidro que o separa dos passageiros.
Nossos olhares se encontraram no reflexo desse vidro. Ela se surpreende a me
ver. Os olhares deixam o intermédio do vidro e se encontram diretamente.
Sorriso harmônico fruto da afinidade habitual, um toque de mãos, diálogo:
“tchaus”. Jeferson, o que essa menina tem a ver com o contexto teatral? Obviamente,
não estou falando dela para expor minha vida afetiva, mas sim porque ela é uma
das atrizes que quero que esteja em uma montagem teatral que estou concebendo.
Só para elucidar que não encontro meus atores nos currículo Lattes, mas na
vida, por evocações. Reconheço pelo olhar. A qualidade que me instiga no ator é
o Olhar. A necessidade intensa do Viver, de estar presente, a têmpora
consciente.
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